sábado, 31 de janeiro de 2009

VIRUS IMIGRANTE- REINALDO JOSÉ LOPES EM VISÕES DA VIDA,31/01/2009.


Palavras como “ambiente”, “habitat” e “ecossistema” inevitavelmente trazem à nossa cabeça imagens da Amazônia, da savana africana ou do fundo do mar: vastos espaços que servem de palco para a diversidade da vida. Ninguém pode dizer que essa impressão seja incorreta, mas basta refletir um pouco para se dar conta de que ela é bastante incompleta. Qualquer corpo humano, por exemplo, é um ecossistema inteiro. Para citar apenas um dos fatos relevantes nesse contexto, há mais células bacterianas do que células suas no seu organismo neste exato momento. O seu corpo também é um habitat onde a evolução está acontecendo o tempo todo – o que, no caso de uma infecção pelo vírus da Aids, pode ser um bocado perigoso.

Eis aí uma área na qual ninguém pode se dar ao luxo de “não acreditar” na teoria da evolução: se você quer se manter um passo à frente do HIV, a dinâmica das transformações evolutivas tem não apenas de ser aceita como fato, mas esmiuçada nos mínimos detalhes, de forma a achar alguma brecha na armadura do inimigo microscópico. Uma pesquisa que acaba de ser publicada dá uma pista de como isso pode ser importante. Segundo os novos dados, durante a transmissão do vírus entre casais, a pele e a mucosa dos órgãos sexuais saudáveis funcionam como um filtro para a diversidade genética do HIV. Só um tipo de vírus consegue atravessar – mais ou menos do mesmo jeito que acontece com animais que migram de um continente para outro no nosso mundo macroscópico.

No entanto, se os recém-infectados pelo vírus já carregam outra doença sexualmente transmissível (DST), seu organismo acaba recebendo o presente de grego de diversas variantes genéticas do vírus, que acabam convivendo no sangue e nas células infectadas do novo soropositivo. Essas são as principais conclusões do artigo de Richard Haaland e seus colegas do Departamento de Patologia e Medicina Laboratorial da Universidade Emory (EUA), publicado na revista científica de acesso livre “PLoS Pathogens”.

Evolução apressadinha


Você pode conferir o artigo na íntegra (em inglês) clicando aqui. Haaland e companhia fizeram questão de estudar esses mecanismos de transmissão em pacientes africanos, já que a epidemia de Aids é um dos maiores flagelo de saúde pública da África, perdendo apenas para a malária, e achar meios de deter o avanço do vírus no continente é essencial.

O consenso científico atual diz que os vírus não são exatamente seres vivos, porque eles não têm metabolismo próprio, ou seja, não são capazes de “montar” suas estruturas moleculares nem de se reproduzir sem a ajuda das células que infectam. Isso não impede, no entanto, que eles evoluam: seu material genético (que pode ser formado por DNA ou pela molécula-irmã dele, o RNA) muitas vezes está sujeito a mutações frenéticas. No caso específico do HIV, isso faz do combate ao vírus uma espécie de “alvo móvel” dos mais chatos, porque as mutações alteram a resposta que o organismo dá ao parasita e, mais complicado ainda, a eficácia dos medicamentos usados contra ele.

Os pesquisadores da Universidade Emory queriam entender o que acontecia com a genética do vírus durante sua transmissão em relações heterossexuais. Eles estudaram, de um lado, um grupo de casais africanos com a doença e, de outro, prostitutas do continente também infectadas. O crucial aqui é que há uma espécie de intersecção entre esses grupos, porque, enquanto os membros de alguns casais foram contaminados pelo próprio parceiro, outros adquiriram o vírus por meio do sexo com outras pessoas – um perfil epidemiológico que não é tão diferente assim do encontrado entre as profissionais do sexo.

O grupo de cientistas usou a sequência de “letras” químicas do material genético dos vírus – no caso, formado por RNA – para traçar uma espécie de árvore genealógica das infecções, ou seja, para determinar quais eram os prováveis “vírus pais” da pessoa transmissora que deram origem aos “vírus filhos” na pessoa infectada. Em geral, o que se verificava é que o vírus do recém-infectado correspondia a uma única variante genética, “selecionada” entre vários tipos de HIV carregados pelo transmissor.

Mas nem sempre. Em alguns casos, a pessoa infectada pelo parceiro trazia em seu organismo várias formas aparentadas, mas bem distintas, do parasita – como se uma fosse “prima” de quarto ou quinto grau da outra, mal comparando. Em tese, essa diferenciação poderia ter surgido por mutações no interior do organismo do receptor, mas análises estatísticas, tomando como base o tempo estimado desde a infecção, mostraram que isso era muito improvável – simplesmente não haveria tempo hábil para que tantas mutações se acumulassem nos vírus durante sua multiplicação no organismo do recém-infectado. Nesses poucos casos, tudo indica que o parceiro com a infecção mais antiga já tinha transmitido originalmente mais de uma variante de HIV para o novo soropositivo.

Sem barreiras


Chegamos, finalmente, ao pulo do gato da pesquisa. Acontece que há uma correlação aparentemente forte entre a presença dessas múltiplas variantes do vírus nos infectados e relatos de outras DSTs, relacionados com infecções genitais inflamatórias. Pelo visto, dizem os pesquisadores, a mucosa genital normal e saudável funciona como uma barreira semipermeável para o vírus. Experimentos em macacos resos mostram que, embora uma infecção localizada nessa região envolva diversas variantes do parasita, apenas uma dessas múltiplas formas acaba se estabelecendo e gerando uma infecção sistêmica, ou seja, em todo o organismo.

O termo que designa esse fenômeno é “gargalo genético” – como o líquido que passa pela parte mais estreita de uma garrafa, ou por um funil, a diversidade genética do HIV se “estreita” ao passar pela mucosa saudável, e acaba sendo reduzida no fim das contas. Além de engendrar um conselho muito prático – além do indispensável uso de camisinha, o combate a qualquer DST também ajuda a dificultar a vida do vírus da Aids –, a descoberta tem potencial para inspirar outros ataques contra a doença. Esse primeiro contato com a mucosa genital é claramente um momento de fragilidade para o vírus, quando ele ainda está tateando para se estabelecer no organismo. Intervenções bem pensadas nessa área do corpo talvez possam fazer com que, em vez de apenas uma variante sobrevivente, nenhuma acabe sobrando para contar a história.


Este post foi publicado em Visões da Vida, Sábado, (31/01/2009), às 10h42. Deixe seu comentário.

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