Escrevo agora de Manaus, aonde vim entrevistar Alanis Morissette. Foi uma boa conversa (mais sobre ela, em breve, aqui neste mesmo espaço), embalada pela intimidade canhestra que surge entre artista e jornalista que já se encontraram - como quem já leu meu livro “De a-ha a U2″ sabe bem - cinco vezes! Pois esse foi o sexto encontro - o que, em absoluto, fez dele um evento ordinário. Primeiro porque ele aconteceu justamente na Amazônia. Depois, porque nossa entrevista começou apenas algumas horas depois de um acontecimento que tanto eu como Alanis estávamos acompanhando de perto - e que você, se não o viu por inteiro, certamente captou algum fragmento dele esta semana: a posse de Barack Obama.
Antes de continuar, quero agradecer você por mais um debate interessante aqui nos comentários. Aliás, o primeiro elogio vai pro Sandro Menezes, autor da imagem que reproduzi aqui no post anterior. Foi sua inspirada “adaptação” da imagem icônica de Obama que abriu as portas para essa saudável discussão - que, devo admitir, às vezes tomou um rumo inesperado. Por exemplo, o deslumbramento brasileiro pela cultura americana, segundo Paulo Oliveira (que apóia-se no livro “Miséria à americana”, editora Record, da brilhante autora americana Barbara Ehrenreich - de quem eu também recomendo “Desemprego de colarinho branco”, também da Record, e, para quem quiser se aventurar no inglês, “Dancing in the streets - a history of colective joy”, ou “Dançando nas ruas - uma história de prazer coletivo”), foi um dos temas que mais provocou desdobramentos - ainda que, pegando emprestado o comentário da ANA, a simples referência a Obama (via Mussum) não quer dizer exatamente que eu nem os leitores que também se divertiram com ela sejamos esses deslumbrados…
Sobretudo o que me deixou mais animado foi a reação positiva ao bom humor da proposta de Sandro, que numa típica irreverência brasileira brincou com os estereótipos e - não sei bem se sem querer ou de propósito - colocou o dedo numa ferida desagradável da nossa sociedade que é a questão racial. Os comentários, claro, refletiram isso. A maioria deles aplaudiu a ironia da “troca de papéis” entre novo presidente americano e o saudoso humorista brasileiro. Mas teve gente que foi mais fundo. A Cristiane, por exemplo, mandou bem ao escrever: “Obama e Mussum são pessoas totalmente diferentes e talvez o recado da imagem seja EI! É apenas mais um presidente tomando posse, não se importem com sua cor!. Ora, temos negros em qualquer profissão, com sucesso ou não! Apesar de ser um marco na história do mundo não é necessário tanto confete, pois é apenas mais um presidente dos EUA”. E veja ainda o comentário do Lucas: “Falar do ‘presidente negro’ chegar a soar como um preconceito simplista quando na verdade o que se espera é alguém capaz de mudar a situação seja ele branco ou negro, seja ele obamis, mussuns, lulis e etc.”.
Do meu lado, tendo a simpatizar com quem vê Obama mais como um agente de mudança do que um símbolo da luta racial americana (que ele também é) - e, nesse sentido, como alguns chegaram a esboçar em seus comentários, ser fruto de um país que elegeu um ex-operário para comandá-lo nos coloca quase que na frente dos próprios americanos nessa atitude radical. Mas estamos falando do mesmo tipo de orgulho?
Como diz o nome de uma canção, que peguei emprestado para o título do post de hoje - uma bizarra colaboração entre David Bowie e o Pat Matheny Group, nos idos de 1985 (quem se lembra?) -, isso aqui não é os Estados Unidos. E, como muitos comentários também fizeram questão de apontar, nem os Estados Unidos são os Estados Unidos.
“Comunismo soviético, Hollywood e religião organizada (…) são fábricas de sonhos cuspindo a mesma fantasia”.
A frase é de um livro sensacional que estou lendo - e certamente será assunto de um post aqui em breve: “Nothing to be frightened of”, do inglês Julian Barnes (em português, “Nada a temer”). Esta é uma estranha obra autobiográfica, que não tem nada a ver diretamente com o novo presidente americano - o fenômeno cultural que estamos discutindo hoje aqui (você tem alguma dúvida de que ele é um fenômeno cultural, e não só político?). Barnes fala principalmente sobre a morte (acho que vou comentá-lo junto com minha opinião sobre o filme “O curioso caso de Benjamin Button”), mas não em resisti citar essa passagem do livro porque ela tem a ver justamente com o que muitos fizeram questão de assinalar sobre a cultura americana: que essa superação da questão racial, como a eleição de Obama parece demonstrar, é apenas mais uma ilusão.
Para os que apostam nisso (e estão com o inglês afiado), sugiro a leitura da coluna de domingo passado de Frank Rick, no “The New York Times”. Por ter passado boa parte da sua vida em Washington DC - uma cidade onde a tensão racial sempre foi jogada para debaixo do tapete - Rich desconfia da promessa de mudança. Entre vários momentos inspirados do seu texto, ele cita uma matéria do jornal satírico (também americano) “The Onion” como a abordagem mais precisa sobre o que a eleição de Obama significou. Sob a manchete “Homem negro ganha o pior emprego da nação” (percebeu a ironia?), o “Onion” descreve: “ele vai ter de passar de quatro a oito anos limpando a bagunça que outras pessoas deixaram para trás” (uma brincadeira que, por uma incrível coincidência, também aparece - não sei se intencionalmente ou não - no comentário que a Gisele Waltschanoff mandou para o post anterior…).
A piada do “The Onion” nos remete novamente à imagem do Mussum como Obamis. Ela inverte os estereótipos raciais - o negro “limpando” o que o branco fez - e ainda, como sugere Frank Rich, só pela via do humor somos capazes de ver a eleição de um negro para a presidência dos Estados Unidos como uma grande farsa.
Será mesmo? Será que nós aqui brasileiros conseguimos perceber essa sutil ironia? Será que o criador da imagem do Obama/Mussum pretendia um comentário social tão profundo? Bem, fosse ou não fosse essa a intenção, o que acabou acontecendo aqui, graças a essa simples associação de idéias, foi um interessante debate de identidades, expectativas e percepções (que, espero, pode até continuar).
Eu mesmo, numa opinião de leigo que nem pretende analisar aqui a situação geopolítica atual (isto é um blog de cultura, lembra-se?), me sinto inclinado ao otimismo quanto à nova era que se anuncia - ilusão hollywoodiana ou não. Assim como Alanis Morissette - conforme ela contou na entrevista. E assim como milhões de pessoas no mundo todo - inclusive, talvez, você. E o que me faz ter esse sentimento é não só a figura do próprio Obama, mas tudo que vem junto com ela. E não estou falando apenas de Aretha Franklin cantando “My country ’tis of thee” na cerimônia da posso de Obama. Nem do show de domingo em Washington - que foi sensacional - onde os artistas que apoiaram Obama (muitos deles, os suspeitos de sempre) provaram que arte tem sim tudo a ver com política (quando quer). Essas seriam conexões óbvias para quem me acompanha aqui neste blog.
Existem muitas outras coisas que vêm junto com Obama - e se você precisar de mais argumentos para defender essa idéia, dê uma olhada no portfólio que a revista do “New York Times” publicou este domingo chamado “Obamas’s people”. É um ensaio fotográfico (assinado por Nadav Kander) com as principais figuras do círculo de poder escolhidas pelo novo presidente americano. Cada imagem vem com uma pequena biografia - mas não precisa nem traduzir o texto para entender onde eu quero chegar. Não conheço a imensa maioria desses assessores - e o texto que os apresenta é sucinto demais para uma análise amiúde. Mas olhe para aquelas caras. Observe a variedade de etnias, o equilíbrio entre homens e mulheres, e a amplitude das faixas etárias - para dar um exemplo, Eugene Kang, assistente especial da presidência (provavelmente para assuntos ligados aos estudantes), tem origem oriental e apenas 24 anos! E depois me diga se esse é ou não um time que inspira esperança?
Não vamos nem comparar com o Brasil - o mesmo país do qual me ufano pela capacidade de improvisar com humor em cima de assuntos tão delicados quanto a questão racial (Obama/Mussum) não pode nem sequer ousar dizer que traz a mesma diversidade na cúpula de seu governo (nosso admirável ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, representando a gentil exceção). Aqui, num comportamento atávico do brasileiro, depositamos todas as esperanças num líder só - e se o que vier atrás dele não refletir exatamente os anseios da população, deixe estar… o importante é que o salvador da pátria (uma expressão, claro, que não foi inventada por mim) está lá. E não estou falando apenas, claro, da nossa maneira de encarar o governo vigente - nesses meus 45 anos, não consigo me lembrar de quando não foi assim…
Isto aqui não é, definitivamente, a “América”. Não somos os Estados Unidos - e, cá entre nós, não acho nem saudável almejar que um dia sejamos. Mas, ainda que de maneira desconfiada, tenho de concluir que estou meio contagiado, sim, com o otimismo da era Obama. Parafraseando Frank Rich, na mesma coluna já citada aqui, não posso testemunhar como um negro - americano ou brasileiro - se sente celebrando a posse do primeiro presidente “afro-americano” dos Estados Unidos. Mas posso, sim, torcer para que ele signifique uma mudança de fato. Sem deslumbramento. Orgulhando-me de conservar a intocável capacidade brasileira de olhar tudo com humor - e um certo esculacho. E reconhecendo, sobretudo, que Aretha Franklin é a maior cantora pop de todos os tempos - mas que nem ela tem o direito de usar um chapéu daqueles impunemente (se Ellen DeGeneres pode brincar com isso, por que não eu?).
Este post foi publicado em Todas, Quinta-feira, (22/01/2009), às 18h47. Deixe seu comentário.
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