sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

TEMPO DE SUTILEZA - COLUNA INSTANTE POSTERIOR NO G1.(BY BRUNO MEDINA)

Madrugada. Rosemary se aproveita do descuido dos vizinhos - que estranhamente pareciam revezar-se na tarefa de vigiá-la - para levantar da cama e seguir o ruído evidente de comemoração que soava do apartamento ao lado. Munida de uma faca e atordoada pelas dúvidas quanto ao paradeiro do filho que acabara de parir, a personagem descobre como chegar até o centro da sala onde seu bebê chora. O choque em vê-la cala todos os presentes. Rosemary se aproxima do berço negro e não consegue evitar o repúdio causado pelo primeiro encontro com o filho:
- O que vocês fizeram com os olhos dele? – pergunta, transtornada.

- Ele tem os olhos do pai – exclama um senhor sentado na poltrona - as mãos e os pés também…

É provável que muitos de vocês tenham reconhecido a seqüência final de “O Bebê de Rosemary”, uma adaptação de Polanski do livro homônimo que se consagrou como referência definitiva para o gênero de terror.

Na versão para o cinema, a macabra constatação de que Rosemary, interpretada por Mia Farrow, havia dado à luz o herdeiro do diabo é construída pouco a pouco. O brilhantismo do diretor atinge o auge no momento do encontro entre mãe e filho. Apenas um diálogo curto, de duas frases, fornece todos os elementos necessários para instaurar o clima de terror evidente. A fisionomia do bebê não revelada, apenas sugerida, habita até hoje - quatro décadas após a estréia - o imaginário de milhões de espectadores, e seguramente o classifica como um dos mais horripilantes personagens que o cinema já produziu, muito embora sua imagem nunca tenha se materializado.

Este recurso comprova a contundência de um elemento cada dia menos afeito ao conteúdo artístico da época atual: a era do making off sepultou o poder de sugestão. Foi-se, há muito, o tempo em que uma barbatana de borracha e duas notas musicais eram suficientes para compor um vilão. Os adventos tecnológicos, bem como o uso irracional da pirotecnia hollywoodiana, sentenciaram as produções a depositarem boa parte de sua sorte em efeitos especiais que antecedem a qualidade dos enredos na ordem de prioridade.

A tendência transcendeu o cinema e é visível em vários outros campos; mas será que é a suposta satisfação do cliente que determina a necessidade de tudo ser revelado? Quando tenho um dvd de show nas mãos normalmente me incomoda a concepção do supra-registro. É câmera no camarim, câmera na platéia, câmera dentro do banheiro, no teto, no microfone, embaixo do banco do baterista. O resultado é uma colcha de retalhos reveladora ao extremo, mas na qual a experiência do show muitas vezes se perde.

“O povo quer saber”, alegam os repórteres dos programas televisivos sensacionalistas. Estão todos mobilizados pelo barraco da semana. Será?

Saudosas as musas anônimas das canções, os pseudônimos, os romances psicológicos ou de protagonistas descontextualizados, os livros e peças sem final óbvio, os narradores dúbios ou os vários narradores, os poetas, pintores e escritores dos quais nada se sabia além da própria obra ou ainda as obras que existiam a despeito de artistas anônimos, na época em que não levavam uma assinatura. Para ficar na literatura, talvez hoje o cerne da discussão seria sobre a traição ou não de Capitu, o que, para dizer o mínimo, esvaziaria por completo o universo de ambiguidades pretendido por Machado de Assis. Não se trata de fazer aqui uma defesa da ignorância, mas sim da sutileza. Porque muitas vezes é ao próprio artista que falta a virtude de saber se preservar. Nem tudo deve ou merece ser sabido, e para tais casos a imaginação ainda funciona como a melhor das traduções. Que o digam os dois aí de baixo:

O que será (À flor da terra) - Chico Buarque e Milton Nascimento

“O que será que será

Que vive nas idéias desses amantes

Que cantam os poetas mais delirantes

Que juram os profetas embriagados

Está na romaria dos mutilados


Está nas fantasias dos infelizes


Está no dia a dia das meretrizes


No plano dos bandidos dos desvalidos


Em todos os sentidos será que será?


O que não tem decência, nem nunca terá!


O que não tem censura, nem nunca terá!


O que não faz sentido…”

Este post foi publicado em Instante Posterior, Sexta-feira, (21/11/2008), às 18h05. Deixe seu comentário.


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