terça-feira, 30 de dezembro de 2008

EGOISMO PRODUTIVO



Dizem por aí que é quase impossível observar em “tempo real” a evolução dos seres vivos: afinal, é o tipo de coisa que precisa de milhões para acontecer, uma escala temporal que deixa no chinelo as nossas breves vidas humanas. Os indícios de que a evolução ocorre seriam, portanto, indiretos: a gente consegue reconstruir os passos do processo, mas só em retrospecto. Em linhas gerais, o argumento está certíssimo — mas pelo visto os cientistas estão desenvolvendo uma visão cada vez mais aguçada dos processos evolutivos “quadro-a-quadro”. E eles são ainda mais malucos do que a gente imagina, a julgar pela história do “divórcio” de duas mosquinhas.
A saga dessa separação litigiosa entre insetos está sendo escarafunchada por Nitin Phadnis e H. Allen Orr, do Departamento de Biologia da Universidade de Rochester (EUA). Os bichos pertencem a subespécies diferentes, a Drosophila pseudoobscura pseudoobscura(para simplificar, vamos chamá-la de subespécie dos EUA) e a Drosophila pseudoobscura bogotana(ou subespécie de Bogotá, para os íntimos). Atualmente há um certo bafafá entre os biólogos sobre o conceito de subespécie: há quem diga que ele mais confunde do que ajuda, além de ser meio arbitrário, e muita gente preferiria jogá-lo fora e ficar só com a idéia de espécie. De qualquer maneira, no caso dessas duas mosquinhas ele até cumpre bem o seu papel clássico: o de indicar criaturas que estariam perto de se separar em duas espécies diferentes, mas ainda não chegaram exatamente lá.
Explica-se: quando uma mosquinha fêmea da subespécie Bogotá resolve juntar os trapinhos com um macho da subespécie EUA, os machos que nascem são estéreis, mas outros tipos de híbridos envolvendo as subespécies são férteis. Note que a situação é diferente do cruzamento entre cavalos (ou éguas) e jumentas (ou jumentos), cujo resultado (burros ou mulas) é sempre estéril, o que configura a plena separação de equinos e asininos em espécies diferentes. Parece que aqui a gente deu a sorte rara de dar “pause” no “filme” da evolução e ver que uma das imagens estáticas mostra o processo do surgimento de novas espécies no flagra.


Incompatibilidade


Os pesquisadores já sabiam que, no caso das mosquinhas, a esterilidade parcial dos híbridos deriva da falta de compatibilidade entre genes de cada uma das subespécies. Ao que parece, trechos de DNA do cromossomo X da variedade Bogotá (lembre-se de que o cromossomo X é importante para a determinação do sexo; fêmeas humanas têm dois cromossomos X, enquanto homens têm um X e um Y) contêm a receita para a produção de proteínas interagem de forma deletéria com as proteínas codificadas por outros cromossomos da variedade EUA. Assim, temos machos estéreis… mas não para sempre.

Sim, porque na velhice os machos híbridos podem recuperar parcialmente a fertilidade — só que produzem praticamente só filhotes do sexo feminino. Numa pesquisa que acaba de ser publicada online na revista americana “Science”, Phadnis e Allen Orr conseguiram mapear um único gene, batizado de Overdrive, que parece ser responsável pelas duas coisas, infertilidade e “preferência” por filhas — e o que ele realmente faz é um bocado maluco. Em resumo, trata-se de um gene cujo “egoísmo” parece ter desencadeado a separação entre as duas subespécies.

A expressão “gene egoísta” tem pelo menos dois significados, igualmente interessantes, mas para a nossa saga das mosquinhas o que conta é o sentido mais restrito: genes que manipulam diretamente a passagem de DNA de uma geração para outra para aumentar suas chances de serem copiados. Não é que eles tenham vontade própria: o mais provável é que algum erro na “formatação” das moléculas de DNA tenha lhes dado a propriedade de se multiplicar além da conta. Seja como for, o Overdrive faz isso aumentando as chances de que o cromossomo X, que o carrega, seja passado para as células sexuais das mosquinhas. E o que acontece se o portador do Overdrive produzir espermatozóides? Ora, ele só vai gerar filhas — e, portanto, mais cromossomos X.

É claro que, no longo prazo, isso levaria a uma multiplicação desproporcional de fêmeas em relação aos machos e, em última instância, acabaria fazendo com que os insetos “dominados” pelo Overdrive se dessem um bocado mal. Aparentemente, mutações capazes de neutralizar essa sacanagem genética foram favorecidas ao longo da evolução das mosquinhas — mas as mudanças foram tais que acabaram justamente impossibilitando, em parte, o cruzamento entre as subespécies. Allen Orr e Phadnis demonstraram isso num simples experimento de transgenia: quando eles “deram” aos machos híbridos a cópia do Overdrive presente nas moscas EUA (e não nas moscas Bogotá), sua fertilidade voltou, em parte.

Uma implicação importante desse divórcio genético complicado é a compreensão de como as espécies surgem. Normalmente, costuma-se imaginar que duas populações de uma mesma criatura se separam, colonizando dois ambientes diferentes, e ao longo do tempo as alterações genéticas vão se acumulando dos dois lados, até que a reprodução se torna difícil ou impossível. Esse cenário pode funcionar muito bem em vários casos, mas uma possibilidade alternativa é a sugerida pelo Overdrive: a alteração genética vem primeiro (no caso, um gene malandrão querendo se dar bem) e a separação reprodutiva entre as populações vem depois, quase como uma solução desesperada à tendência interna nociva. Nesse caso, não seria exagero dizer que as espécies novas surgem de dentro para fora.

(Post publicado na coluna VISÃO DE VIDA,13 de Dezembro de 2008 às 14:48, no G1)

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