terça-feira, 30 de dezembro de 2008

BRINCADEIRA SÉRIA.


Duas canções, bem diferentes em tema e qualidade lírica, normalmente me vêem à cabeça quando penso em crianças brincando. A primeira é a manjada “Bola de meia, bola de gude”, que ficou famosa na voz de Milton Nascimento (você certamente conhece: “Há um menino/ Há um moleque/ Morando sempre no meu coração” etc.). A outra eu costumava ouvir dos meus coleguinhas da pré-escola: “Gordo, baleia/ Saco de areia/ Bunda vermelha” (pra refinar ainda mais a rima, no sotaque da minha terra a última palavra era pronunciada “vermêia”). Normalmente eu encerrava a cantilena fechando os punhos e correndo pra cima deles. Acho que o contraste de temas musicais é suficiente para demonstrar o que estou querendo dizer: por mais que a gente transforme o ato de brincar numa miragem idílica da infância, a atividade também tem um lado mortalmente sério, para não dizer cruel (bem, ao menos para um menino de cinco anos acima do peso). Brincar pode ser algo tão sério, aliás, que a evolução teria embutido a tendência à brincadeira na nossa e em muitas outras espécies.


A pergunta que não quer calar é: para quê? Biólogos, psicólogos e neurocientistas estão só começando a levantar o véu que cobre esse mistério. Por enquanto, é importante se manter em guarda contra a visão ingênua de que as brincadeiras à moda antiga (como amarelinha, esconde-esconde, cantar “Gordo, baleia” para o seu amiguinho e sair correndo) são uma panacéia contra a epidemia de obesidade e maus modos que assola a criançada do século 21. Mas já há alguns indícios intrigantes sobre a importância de brincar para o futuro dos bebês de quase todo tipo de mamífero, especialmente o do bicho homem.


Vai pagar quanto?


Ao estudar qualquer aspecto da nossa biologia sob o ponto de vista evolutivo, sempre é bom pensar um pouco em termos econômicos. Nada no mundo é de graça, e as energias gastas pelos seres vivos em qualquer atividade inevitavelmente acabam entrando num balancete inconsciente de custo e benefício: vale a pena fazer tal e tal coisa? Meus competidores, que não a estão fazendo, vão sair na minha frente graças a isso?


Desse ponto de vista, o ato de brincar pode parecer uma inutilidade, um luxo. Praticamente todos os mamíferos conhecidos brincam, em especial na sua infância, mas aparentemente o fazem apenas quando estão num ambiente saudável, bem alimentados e livres de ameaças. Nossa espécie talvez seja ligeiramente excepcional porque as crianças humanas não perdem totalmente o impulso de brincar mesmo que estejam em Auschwitz ou num campo de refugiados do Sudão - embora esse impulso diminua em tais circunstâncias desastrosas.


Apesar de tudo, a prevalência das brincadeiras em ambientes normais parece exigir algum tipo de benefício biológico significativo, porque o custo é indiscutível. A começar pela energia pura: até 15% das calorias de um mamífero em crescimento são despejados no ato aparentemente inútil de brincar. E, como toda mãe neurótica do planeta sabe, as crianças vivem se espatifando quando brincam. Que o diga Robert Harcourt, zoólogo da Universidade Macquarie, na Austrália, que estudava as brincadeiras de filhotes de foca na costa peruana. Os bichinhos são um dos pratos prediletos dos leões-marinhos na região. E, segundo os cálculos de Harcourt, nada menos que 85% dos bebês-focas mortos por leões-marinhos estavam brincando. Isso sem falar no que vemos em outras espécies, inclusive a nossa: tombos, trombadas, escorregões - muitas vezes fatais. Brincar, em outras palavras, pode ser muito, muito perigoso.


E se, mesmo assim, o impulso brincalhão não desaparece, varrido pela seleção natural, alguma coisa nele está valendo a pena. É aí que entram algumas hipóteses, não necessariamente em contradição absoluta umas com as outras: muitas podem ser complementares.


Prepare-se, garoto


A idéia mais simples e intuitiva é a de que as brincadeiras são a escola da vida: quem brinca de lutar (a famosa “brincadeira de mão”, como diziam com ar de reprovação os adultos na minha infância) está treinando para lutar de verdade quando for gente grande; quem aposta corrida prepara seus músculos para correr de predadores de verdade; e assim por diante.


Por mais que a proposta pareça lógica, ela tem alguns furos. Existe uma diferença significativa nos tipos de movimentos e atitudes envolvidos, digamos, numa luta de brincadeira e numa briga de verdade, de tal forma que fica um tanto improvável a idéia de que uma coisa prepara você para a outra, ao menos diretamente. Alguns experimentos também mostram que a correlação entre o suposto “treinamento” e a coisa real é baixa: gatinhos que ganharam um monte de brinquedos durante sua infância não se tornaram caçadores melhores do que os membros de outro grupo de bichanos, que cresceu num ambiente mais sisudo, de acordo com pesquisadores da Universidade de St. Andrews (Escócia).


Graças a esses pequenos inconvenientes, outras hipóteses começaram a fervilhar. Uma delas propõe que, embora o ato de brincar não seja um treino direto para nenhuma atividade adulta, ele ajudaria o cérebro a amadurecer da maneira adequada, exercitando certos circuitos cruciais. Um dos defensores da idéia é John Byers, da Universidade de Idaho (EUA), que notou uma interessante correlação entre o desenvolvimento do cerebelo (grosso modo, a área motora do cérebro) e o comportamento brincalhão em animais como camundongos, ratos e gatos. Em suma, o que se vê é que o desenvolvimento dessa região do cérebro se completa justamente na “puberdade” - fase em que as brincadeiras finalmente diminuem, ou cessam totalmente.


Outros trabalhos experimentais também demonstraram uma correlação de mão dupla em ratos: roedores com danos cerebrais não sabem brincar, assim como bichos sem oportunidade de brincar parecem ter problemas com o desenvolvimento normal do cérebro. Há quem proponha até uma correlação entre o distúrbio do déficit de atenção - a famosa hiperatividade - e problemas de desenvolvimento neuronal ligados a um impulso não-saciado de brincar. Permitir que crianças hiperativas brinquem por mais tempo durante o dia poderia ajudá-las a controlar seus problemas de atenção, segundo essa hipótese.


Beco sem saída?


Apesar do apelo explicativo das idéias acima, alguém pode muito bem ficar com a impressão de que chegamos a uma espécie de beco sem saída. Atividades complexas e polimórficas, como é o ato de brincar, impõem desafios sérios às tentativas de desmembrá-las em suas partes essenciais e testá-las experimentalmente.


Enquanto a explicação definitiva não vem, talvez seja interessante encararmos a nossa tendência irrefreável de brincar como uma reserva de flexibilidade física, comportamental e mental. Em primeiro lugar, brincamos pelo prazer da brincadeira: pelo prazer de explorar as possibilidades de nossa interação com o ambiente e com os outros membros do nosso grupo num contexto relativamente mais seguro do que a “vida real” (embora não isento de riscos, é bom lembrar). Só por isso já vale a pena tentar proporcionar aos nossos filhos o máximo possível desse misterioso luxo evolutivo.


——Antes de me despedir, tiro meu chapéu para a jornalista científica americana Robin Marantz Henig, cujos escritos me ajudaram um bocado a entender os meandros da biologia evolutiva das brincadeiras.

(POST PUBLICADO NA COLUNA VISÃO DE VIDA,NO G1,18 de Outubro de 2008 às 09:48 .

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