terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

SOBRE PLANOS ADIADOS/ZECA CAMARGO NA COLUNA TODAS NO G1.

Talvez essa piada tenha passado despercebida por você durante a cerimônia deste ano do Globo de Ouro. Talvez toda a cerimônia do Globo de Ouro tenha passado despercebida por você – algo do qual você jamais deve se sentir culpado ou culpada (o que conta mesmo, é o Oscar, você sabe…). Qualquer que seja seu caso, vamos a uma rápida descrição da brincadeira entre o comediante Ricky Gervais e a atriz Kate Winslet pra a gente poder continuar. Ou talvez seja ainda melhor contar antes um pouco do episódio de uma série de TV que gerou a tal piada.
“Extras” é uma das melhores coisas que já foi feita na TV a cabo de qualquer parte do mundo. Nunca viu? Mais uma vez, a culpa não é sua. Se não me engano, acho que ela só passou meio escondida no Brasil – num canal “premium” da HBO, se minha pesquisa da internet foi eficiente. Mal registrou na mídia, e eu mesmo acabei assistindo por insistência árdua de um amigo meu que é fã da série – e de Ricky Gervais, seu criador. E tive de comprar uma caixa de DVD na internet para conseguir tal, digamos, raridade.
Gervais, claro, é o comediante inglês que se tornou famoso mundialmente com “The office” – o original britânico, e não o quase-pastiche da versão americana. Embalado justamente por esse sucesso, ele conseguiu produzir esse projeto que desenvolvia há anos: histórias de figurantes que sempre participam de grandes produções – e são até bons atores e atrizes – mas nunca conseguem um papel significativo (quanto mais com falas!). Um desses figurantes é vivido pelo próprio Gervais, mas a grande graça da série é que, a cada episódio ele convida uma grande estrela de Hollywood para fazer o papel dela mesma.
Todos sempre aceitam de bom grado, porque sabem que o roteiro é inteligente – e, principalmente, engraçado (ainda que “Extras” não seja daqueles “sitcoms” que já vêm com a trilha sonora de risada, tipo “Friends”, é uma das coisas mais hilárias - e aflitivas - que já vi desde “Curb your enthusiasm”). Para citar apenas alguns, entre as lista de celebridades que já passaram por lá estão Robert De Niro, Chris Martin (sim, Coldplay), Clive Owen, Ian McKellen, Ben Affleck, Daniel Radcliffe (sim, “Harry Potter”) – e Kate Winslet, que participou logo do episódio de estreia.
Numa das melhores tiradas desse “Extras” com Winslet, uma figurante se aproxima da atriz – que faz papel de uma freira que está salvando um grupo de pessoas dos horrores nazistas num trabalho pequeno de um diretor alternativo – para elogiar sua participação num filme desses “de arte”, por um cachê bem mais baixo que o que ela receberia numa grandeprodução hollywoodiana. Winslet, que está num intervalo das filmagens, fumando ainda vestida de freira, dá então uma resposta inesperadamente ríspida – que não me lembro literalmente, mas é algo na linha: “Quem disse que eu estou fazendo esse filme por amor à arte? Eu quero é ganhar um Oscar! E fazer um papel num filme sobre o Holocausto é tiro certo? A melhor maneira de ganhar um Oscar é ter um papel forte em história de Holocausto, ou fazer um débil mental!”.
Uma checagem recente histórica só comprova essa “regra” – ao qual os mais bem-humorados estudiosos da premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood ainda costumam incluir o papel de “prostituta de bom coração”. Pense em “Rain man”, e o prêmio de Dustin Hoffman. Ou em Tom Hanks em “Forrest Gump”. Adrien Brody em “O pianista”, talvez? Liam Neeson em “A lista de Schindler” (só indicado… mas quase levou!)? Os exemplos são vários – e vou parar por aqui para não desviar muito do nosso assunto…
O fato é que, anos depois de Winslet participar daquele “Extras”, eis que ela faz um filme chamado “O leitor” – e eis que ela é indicada para vários prêmios (inclusive o Oscar)! E, eis ainda, que ela ganha um deles, o Globo de Ouro – e quem está na festa é o próprio Gervais, que, na primeira chance que tem de subir ao palco vira-se para a atriz e brinca: “Eu não te falei que era só fazer um filme sobre o Holocausto que o prêmio viria?”.
Humor negro? Ironia do destino? Ou simplesmente um reflexo involuntário de um comediante genial?
Eu ainda não vi “O leitor” – está na lista desta semana, se eu conseguir… Mas vi o trailer (clique abaixo para ver), e não é preciso ser o Ricky Gervais para imaginar que ela está num papel perfeito para ganhar um Oscar (o que não significa que vá ganhar, claro, conhecendo a imprevisibilidade dessa premiação). Também dá para perceber, apenas por esses trechos, que ela está ótima na sua interpretação. Mas por outro lado, quando ela não está?

Você também é – como eu – da turma que acha que só sobreviveu as longas horas do “Titanic” só por causa dela? Que ótimo, acho que você vai gostar do que vou escrever agora.
Sou fã de Kate Winslet desde “Almas gêmeas” – uma pequena produção de 1994, assinada por um diretor que, naquele tempo, era totalmente desconhecido, um tal de Peter Jackson (seu Frodo interno já começou a tilintar? É ele mesmo: o homem por trás da adaptação para o cinema da trilogia “Senhor dos anéis”). Pouco tempo depois, ela já estrelava numa versão bem-sucedida de “Razão e sensibilidade”, chamando mais atenção do que Emma Thompson (coisa que ninguém achava que seria possível). Depois, claro, veio “Titanic” – e nunca mais seria possível deixar de acompanhar sua carreira.
Segui de perto e defendi a atriz mesmo em seus papéis mais infelizes – mesmo no teste de fogo para fãs chamado “Fogo sagrado”. Mas eu diria que de 2004 para cá, desde que fez o sensacional “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, ela não deu um passo em falso. Já escrevi aqui mesmo de “Pecados íntimos”. Adorei “Em busca da Terra do Nunca”. Me diverti até com “O amor não tira férias” (que vi num longo voo). E agora, semana passada, vi “Foi apenas um sonho” – e renovei meus votos de adoração eterna a Kate Wislet (que, só para dar mais uma referência, brilha no ensaio fotográfico que saiu domingo passado na revista do jornal “The New York Times”.
Fico tentado a gastar aqui um parágrafo só sobre a incrível capacidade das distribuidoras brasileiras inventarem títulos bizarros para filmes que eles acham que a tradução literal do inglês não é muito, digamos, popular… Por exemplo, será que “Rua Revolucionária” – ou até a adaptação “Rua da Revolução” – seria tão repugnante assim para as platéias brasileiras? Será que eles acham melhor um título “sacado” – este, no caso, tão mal sacado, que praticamente conta todo o enredo do filme numa frase? Sei que você seria capaz, com sua indignação, de contribuir com várias outras “traduções” para essa discussão – mas se entrarmos nela, como é que vou falar do tanto que gostei de Kate Winslet em “Foi apenas um sonho”? Vamos então ao filme.


Primeiro, aos fãs de Leonardo DiCaprio, eu sinto informar que o filme não é dele. É só de Kate. Sim, eu sei que o personagem dele - um jovem ambicioso e sonhador, que troca seus ideais por uma vida pacata num subúrbio americano (na tal “Rua Revolucionária” do título) e um emprego que ele detesta, mas que paga bem - foi feito para ser um daqueles “grandes papéis americanos” que ajudaram a definir o teatro moderno nos Estados Unidos (pense em Arthur Miller). Sei ainda que reunir o casal de atores de “Titanic” era, obviamente, também uma tentativa de reproduzir aquela química entre eles. Mas lembre-se que o filme é de Sam Mendes - o ousado e provocador diretor de “Beleza americana”, que por acaso também é o marido de Kate Winslet. Adivinha então quem é realmente o foco da história?

Não que o personagem de DiCaprio seja ruim - o problema é que ele é um clichê. Bem escrito e bem interpretado. Mas um clichê. Já o de Winslet - uma mulher apaixonada, que tenta reacender no marido a mesma chama que ele tinha quando ela o conheceu, como antídoto para sua frustração e fuga de uma vida sem ideal -, por pouco também não esbarra nessa armadilha. Porém, a interpretação da atriz e o final ligeiramente atordoante de sua personagem, resgatam essa esposa suburbana - que muitas vezes lembra aquela mulher interpretada por Julianne Moore em “As horas” - da normalidade e a torna uma mártir das oportunidades perdidas. Ou se preferir, dos planos adiados.

Aliás, foram eles que “me pegaram de jeito”. As acaloradas discussões de casal, as sorrateiras infidelidades, o desejo bipolar pelo parceiro, os constrangedores silêncios depois das brigas - tudo isso a gente já viu o bastante no cinema, e “Foi apenas um sonho” oferece mais do mesmo. O que eu achei mesmo comovente no filme é a presença incômoda de promessas que não foram cumpridas. O casal não mora numa rua que tem revolução no nome à toa. Quando eles se mudam para lá, a agente imobiliária (interpretada pela nunca menos que ótima Kathy Bates) já insinuava que eles se encaixariam perfeitamente numa rua como aquela - e toda a expectativa da vizinhança é de que o casal Wheeler cumpra a promessa de ser diferente, especial.

Logo no início do filme, quando eles se conhecem, a semente de todas as revoluções está lá, na cena em que, numa conversa rápida, DiCaprio “ganha” Winslet falando de seus planos para o futuro. A história é então abruptamente catapultada para cerca de dez anos depois, quando os Wheeler, com dois filhos e uma bela casa, são vítimas de uma vida chata que nem eles mesmos podiam imaginar que teriam. A saída, proposta por Winslet, é simples e ousada: jogar tudo para cima e ir para Paris! Viver de quê? Ah, isso depois a gente resolve…

É nesse devaneio momentâneo - e nos seus desdobramentos dele, que Winslet brilha. É no desespero de ver que nada do que eles planejaram pode acontecer, que o filme passa de uma simples história de um casal em conflito para um debate sutilmente mais existencial. É aí que ele fala comigo.

É difícil não ser auto-referente numa hora dessas. E talvez o fato de eu já estar na segunda metade dos meus 40 anos ajude nessa reflexão. Mas não existe nada mais cruel para mim do que não poder realizar o potencial máximo de um sonho - de um projeto, de uma ideia qualquer. Não precisa ser “largar tudo e ir para Paris” - pode ser qualquer plano. Das ambições mais ambiciosas - dar uma volta ao mundo (ou duas!) - às mais simples - passar um fim de ano cercado de amigos -, eu sempre tive a chance de correr atrás delas. Nem de longe posso dizer que realizei tudo que queria - aliás, espero ter fôlego para fazer ainda muitas coisas, grandes e pequenas. Mas a gente sabe que muitas histórias não vão para frente - que todo dia a gente cruza histórias de frustrações, de promessas não preenchidas, de gente que só ouve não. E isso acaba comigo.

Claro que eu sempre tento “virar o jogo” - ou orientar as pessoas nesse sentido. Como costumo falar, nada é tão estimulante como um não: ah, não pode fazer isso? Pois é aí que eu vou atrás mesmo! Mas sei também que nem sempre dá. E que um número absurdo de desejos simplesmente não se cumprem. Por isso quando chega um filme como “Foi tudo um sonho” e me lembra disso - não só das frustrações que resultam de planos infinitamente adiados, como das piores consequências que eles podem provocar (e as do casal Wheeler se espatifam de maneira espetacular) - eu fico meio mexido. E ainda por cima com Kate Winslet…

Arrisco aqui um palpite de que, se ela ganhar o Oscar (bem no domingo de Carnaval, que maldade - ainda não decidi se vou para a avenida ou para o tapete vermelho), não será por esse filme. Se o Globo de Ouro e a piada “nem tão piada assim” de Ricky Gervais são sinais de alguma coisa, suas chances são bem maiores pela atuação em “O leitor” - uma performance que eu já espero gostar bastante. Mas. se dependesse da minha vontade, seria como a encarnação de alguém que pensou em um dia buscar uma vida menos ordinária (uma das minhas expressões favoritas, aliás), ninguém vai deixar uma marca mais forte em mim nesta temporada cinematográfica do que a Kate Winslet que morava numa rua de nome inspirador.

Este post foi publicado em Todas, Segunda-feira, (09/02/2009), às 15h50.



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